Nunca houve, talvez, uma geografia tão confusa, hesitante, cheia de erros e de reticências do que a do ocidente do rio Madeira, durante os tempos coloniais”. (Leandro Tocantins, 2001, 387p. )
Eduardo Carneiro * A pergunta que traz o título desse artigo parece ter uma resposta óbvia para nós acreanos: o Acre pertencia ao Brasil. Os mais ufanistas acrescentariam “foi preciso que o sangue de nossos antepassados, heróis revolucionários, fosse derramado para que o Acre se desligasse da usurpadora Bolívia”. Mas pelo que sabemos, o Peru também reivindicava o Acre. Qual dos três países estava com a razão?
O BRASIL? Juridicamente todos os Tratados Internacionais, até então, davam uma resposta negativa a essa pergunta. A Bula Papal Intercoerente (1493) Tratado de Tordesilhas (1494), Tratado de Madri (1750), Tratado de Prado (1761), Tratado de Santo Ildefonso (1777) e o Tratado de Badajós (1801). O próprio Brasil Imperial reconhecia que o Acre pertencia à Bolívia através do Tratado de Ayacucho (1867) e por inúmeras vezes o Brasil Republicano confirmara o prescrito de 1967. Por que o Brasil teve que pagar à Bolívia (Tratado de Petrópolis, 1903) uma terra que lhe pertenceria?
O PERU? Como sabemos, a Bolívia fazia parte do Peru, um dos quatro vice-reinados da Espanha aqui na América. A Bolívia somente conquistou sua independência em 1825, no entanto, não houve consenso em relação aos limites fronteiriços com o Peru. O Peru alegava que todo o vale do Amazonas, a leste do meridiano do nascente do Javari, lhe pertencia. Quando houve a “revolução” acreana, essa questão ainda estava latente. Nesse ponto de vista, o Brasil teria de negociar o Acre com o Peru e não com a Bolívia. De fato, bastaram alguns meses para que o Barão de Rio Branco resolvesse a questão acreana com a Bolívia. Com o Peru, ao contrário, a pendenga durou seis longos anos.
A BOLÍVIA? A Bolívia considerava o Acre como “Tierras non descobiertas”, ou seja, terras ainda não exploradas pelos bolivianos. A atenção econômica desse país estava voltada para a extração de ouro e prata, negócio seguro e certo. Além do mais, a Bolívia vinha de uma guerra contra o Chile de 4 anos (1879-1882), portanto, teve que deslocar recursos humanos em direção oposta ao Acre. Aproveitando-se do patrocínio internacional e da crescente valorização do preço da borracha, milhares de nordestinos ocuparam as terras, criando o que se chamou de “Questão do Acre”. A Bolívia, mesmo sem ter ocupado a terra, alegava que o Acre lhe pertencia baseando-se nos mesmos Tratados Internacionais que o Peru, exceto o de Ayacucho.
De quem era o Acre, afinal? Ora, segundo a retórica aceita do UTI POSSIDETIS, o Acre pertenceria não aos seus descobridores, e sim aos seus ocupantes. Então o Acre inegavelmente pertencia aos primeiros ocupantes, certo? Sim, está correto. Ora, então o Acre pertencia inegavelmente aos brasileiros, certo? Não, errado. Os brasileiros foram um dos primeiros assassinos brancos na região e não os seus primeiros ocupantes. Os primeiros ocupantes foram os índios.
Até a segunda metade do século XIX, viviam no Acre cerca de 150 mil índios, distribuídos em 50 povos. Eram índios brasileiros ou bolivianos? Eram futuras vítimas do homem branco, brasileiros por mera coincidência, e isso nos basta. As “correrias” foram à maneira mais humana dos “heróis acreanos” dizimarem os índios e reocuparem o “último oeste”. A ambição pelo lucro gumífero moveu todo o genocídio, é o que a historiografia oficial convenientemente chamou de patriotismo.
Atualmente vivem no Acre um pouco mais de 10 mil indígenas. No último dia 19 de abril, dia em que o branco concedeu ao índio para vãs “comemorações”, políticos que se autoproclamam continuadores do espírito revolucionário dos primeiros acreanos, disputaram “microfones” para convencer os próprios brancos, que os índios no Acre têm “VALOR”.
Pode o índio ter valor sob a tutela do branco? Pode o índio ter valor nas mãos de quem se diz representar os seus algozes? Mas vivemos “novos tempos”. Tempos em que a Floresta vira nome de governo, índios viram autoridades, etnias ganham Secretaria. Oh, que engodo! Já diria Foucault em A Ordem do Discurso, que a instituição “lhe prepara um lugar que o honro, mas o desarma”. O Acre pertencia aos índios, mas esse debate pouco importa numa terra feita de “heróis”.
* Eduardo Carneiro é acadêmico do Mestrado em Letras na Ufac